Grande cientista social
Autor: Gilfrancisco Santos
Professor de geografia, historiador e etnógrafo sergipano, Bernardino José de Souza (1884-1949), autor de muitas contribuições preciosas sobre a nossa terra e o nosso povo (Dicionário da terra e da Gente do Brasil; O Pau-Brasil na História Nacional; Ciclo do carro de bois no Brasil, dentre outros), continua ignorado por seus conterrâneos, apesar de ser referência importante no acervo bibliográfico em língua portuguesa. Em 1934, alcançara um merecido vôo para o Rio de Janeiro, onde assumiu alguns cargos públicos, como de Ministro do Tribunal de Contas da União. A obra de Bernardino de Souza, publicada em opúsculos e livros é constituída de discursos, proferidos em eventos memoráveis ou efemérides gloriosas, conferências, comunicações, memórias históricas, relatórios e artigos publicados nos jornais e revistas.
Nascido no Engenho Murta, Vila Cristina, hoje Cristinápolis, Sergipe, nos limites da Bahia, a 8 de fevereiro de 1884, Bernardino José de Souza, filho do coronel Otávio de Souza Leite, tipo representante da aristocracia rural do Império e Filomena Maciel de Faria, aprendeu às primeiras letras na fazenda com a professora Maria Sá Cristina de Gouvêa.
O jovem Bernardino chega a capital baiana juntamente com o pai, em 1897, aos doze anos, para interná-lo no Colégio Carneiro Ribeiro, situado no velho casarão da ladeira da Soledade, dirigido pelo grande filólogo. Feito os preparatórios matriculou-se em março de 1900, na Faculdade Livre de Direito da Bahia (hoje incorporada à Universidade Federal da Bahia), bacharelando-se a 6 de dezembro de 1904, sendo escolhido pelos colegas orador da turma de bacharelandos.
Após a sua formatura, casa-se em 8 de julho com d. Maria Olívia Carneiro de Souza, filha de Carneiro Ribeiro e logo se entrega ao magistério, sendo nomeado professor de matérias de sua predileção: Geografia (1905); História Universal e do Brasil em 1906, do conceituado Colégio carneiro Ribeiro. Nesse último ano foi convidado para reger uma das cadeiras do Instituto de Ciências e Letras.Inscreveu-se na Faculdade de Direito para concurso de lente substituto da 2ª seção e logrando aprovação, veio a ser nomeado pela congregação, por acesso, em 5 de abril de 1915, professor catedrático de Direito Internacional Público; Diplomacia e Direito Internacional Privado e Direito Público e Constitucional.
Em virtude da Lei orgânica do Ensino de 1911, passou a ser lente extraordinário da 1ª seção, compreendendo aquelas duas cadeiras e mais a de Enciclopédia Jurídica.
Como político, deputado estadual em duas legislaturas, a 8ª, de 1905 a 1906 e a 9ª, de 1907 a 1908. Na qualidade de professor do Educandário dos Perdões, Escola Normal, e equiparada em 1911, foi nomeado para lecionar Geografia e História. Bernardino de Souza ensinou em diversos estabelecimentos particulares de ensino. Foi Catedrático de História Universal no Ginásio da Bahia, do qual foi diretor em 1925.
Bernardino dirigiu a Faculdade de Direito da Bahia de 1929 a 1934, ano em que foi nomeado, por decreto de 9 de março, membro da Câmara de Reajustamento Econômico, no Rio de Janeiro, onde fixou residência. De 18 de fevereiro a 15 de agosto de 1931 foi secretário do Interior e Justiça, Instrução, Saúde e Assistência Pública, durante a interventoria de Artur Neiva (1880-1943).
Nomeado ministro do Tribunal de Contas da União, do qual foi presidente, nele permaneceu até falecer em 1949, na capital federal, vivendo seus últimos quinze anos.
Oriundo da aristocracia agrária, de família tradicionalmente ligada a terra, não perdeu nunca o seu sentido da vida rural, a paixão pelos seus encantos, que constituíram estímulo e inspiração de numerosos estudos seus. A terra e a gente do Brasil era sua paixão, aquilo que constituiu sua razão de ser. Severo e honesto em todas as suas atividades, conhecia profundamente tudo o que ensinava. Graças a Bernardino de Souza, os estudos brasileiros tiveram uma contribuição rara. Prático, era dotado de energia e vontade para execução dos seus ideais. Ou como bem definiu o educador baiano Anísio Teixeira (1900-1971):
"Bernardino José de Souza foi um homem bem representativo do nordeste, da zona semi-árida onde nasceu na fronteira entre Bahia e Sergipe. Não tinha aquela "maciez" dos baianos, ou dos nortistas "amaciados" pela Bahia, da observação penetrante de Gilberto Freyre. Bernardino, como Rodrigues Dória, foi um sergipano cheio de ímpetos, e de até violências, postos a serviço de grandes causas. Renovou, material e intelectualmente, duas instituições culturais de grande porte: a Faculdade de Direito (onde é atualmente a sede da Ordem dos Advogados, depois de ter sido o prédio ocupado pela Escola de Administração da UFBA e pelo Fórum Federal) e o Instituto Histórico da Bahia. Sozinho, construiu palácios para ambos, abrindo-lhes novos rumos".
Apaixonado, desde cedo, pela geografia, Bernardino José de Souza participou com brilho excepcional de todos os congressos nacionais da especialidade. Foi realmente, antes de tudo um geógrafo. Portanto, não foi somente um homem de idéias, mas, sobretudo de ideais.
No longo prefácio de 21 páginas, escritas por Teodoro Sampaio para o livro Por Mares e Terras (leituras geográficas), de 1913, o experiente geógrafo e historiador baiano comenta o seguinte: "As Leituras Geográficas do Dr. Bernardino de Souza, construídas por uma série de artigos, aparentemente desconexos, lançados nos moldes superiores da boa doutrina, da linguagem castigada e vibrante de juvenil entusiasmo e de patriotismo, vêm assim, atalho, agita questões que mais de perto se prendem ao desenvolvimento nacional, no que ele reclama do melhor conhecimento do nosso próprio território, pelo estudo mais acurado da Geografia Pátria, pelos problemas científicos de que cogitam, pelas sugestões de caráter político-administrativo que elas lembram, pela novidade de certas investigações que manifestam". E encerra à apresentação desta coletânea geográfica, de Bernardino de Souza dizendo que é "fruto de vocação e de entusiasmo de um cultor sincero da geografia, encontre no meio culto da nossa terra àquela boa acolhida a que faz jus toda a boa ação desinteressada e patriótica, qual a de estudar e divulgar a ciência, despertar energias e preparar o futuro, são os meus votos".
Morto em 11 de janeiro de 1949 no Rio de janeiro, o féretro saiu à tarde do dia seguinte de sua residência, à Rua Cândido Gaffrée, 196, para o Cemitério São João Batista. Bernardino de Souza deixou viúva, Maria Olívia Carneiro de Souza e os filhos Maria Berenice Carneiro de Souza (funcionária da ONU, nos Estados Unidos da América), Selene Maria de Souza Medeiros (poeta, casada com José Cruz Medeiros) e Sindoro Carneiro de Souza (engenheiro civil do Conselho de Águas e Energia Elétrica). O professor deixou ainda dez irmãos residentes entre os Estados da Bahia, Rio de Janeiro e Sergipe.
Obras-Primas (O pau-brasil na história nacional) - o pau-brasil, hoje árvore rara, era intensamente procurado nos tempos coloniais para a extração do corante vermelho brasilina, que, depois de extraído, oxida-se, dando a brasileina; usava-se esse corante para tingir tecidos e fabricar tinta de escrever. Hoje em dia, a madeira fornece é empregada apenas na fabricação de arcos para violino, motivo pelo qual é exportada, em pequena escala.
O livro é resultado da tese apresentada por incumbência do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro para o III Congresso de História Nacional (1938). Publicado no ano seguinte, a esse estudo valioso, específico, que abarca o problema em sua totalidade, foi acrescida de um capitulo do cientista Artur Neiva e de um parecer de Oliveira Viana. O historiador e professor Américo Jacobina Lacombe (1909-1993), diretor da coleção "Brasiliana", responsável pela edição do livro, disse que ele "representou para os estudiosos da primeira fase de nossa história econômica, sabem-no todos os estudiosos do país".
O Pau-Brasil na História Nacional é um admirável estudo de Geografia Humana, com toda a influência econômica e social do espécime da nossa flora que batizou o país. É um rigoroso trabalho de pesquisa, inficiente para modificar o conceito até então firmado, de que o ciclo econômico do pau-brasil esteve circunscrito ao século XVI. A documentação revelada demonstra que tal ciclo veio até o último quartel do século XIX. Na verdade o pau-brasil teve significado na história, refletindo-se em vários aspectos, pois fez muito mais do que contribuir para o nome do país.
(o ciclo do carro de bois no Brasil) - o carro de bois foi o primeiro veículo que rodou em terras brasileiras, introduzido pelos portugueses. Seu surgimento e seu emprego estiveram estreitamente ligados à indústria canavieira. Nos séculos XVII e XVIII, monopolizou quase todo o transporte por terra no Brasil. No século XIX, ainda era o principal veículo de transportes pesados por terra. Apesar do desenvolvimento dos transportes mecanizados e do surgimento e expansão das ferrovias, o carro de bois no século XX continuou largamente utilizado, sobretudo no interior.
O projeto para a realização desse livro exigiu de Bernardino todas as reservas de homem de ação e as qualidades do sociólogo, do historiador, do geógrafo, do folclorista. Foi a saudade do Engenho Murta que deu a Bernardino forças necessárias para elaboração do livro. Ciclo do carro de boi no Brasil é na verdade um reencontro com as coisas do seu passado. Disse Bernardino de Souza:
"Este livro foi elaborado com o pensamento nas duras e generosas lidas dos agricultores do Brasil, em cujas fileiras se inscrevem ao meu alcance, todos os meus antepassados. Por isso mesmo o esforço e consagro a todos os lavradores do país, ricos e pobres, proprietários e jornaleiros: quero apenas significar-lhes a veneração que tributo a quantos, poder a poder, desde os albores da Pátria, tem desbravado, semeado e regado de suor, permitindo-lhe o crescimento modesto e sóbrio, mas seguro e honesto, através de quatrocentos anos de jornada ao sol da civilização".
Sobre o livro afirma Anísio Teixeira em uma de suas abras: "apresenta muitos pontos de contato com as obras materiais que realizou. É uma pesquisa em profundidade, com material planejado e reunido pelo autor, material este que normalmente exigiria uma equipe distribuída pelos quatro cantos do país.
A indomável energia de Bernardino de Souza conseguiu emoldurar um vasto painel, cheio de variantes no tempo e no espaço, e transforma-lo em obra monumental de arte e de pensamento a um só tempo: inspiração para o artista e instrumento de trabalho para o cientista social".
Portanto, Ciclo do carro de bois no Brasil, escrito com o mais completo rigor científico, continua até hoje sendo o de maior utilidade para a compreensão da vida econômica do país em todos os tempos. Concluída a longa pesquisa, vieram às desilusões quanto à publicação imediata. Apesar de ter recorrido a várias editoras, instituições, órgãos de cultura, Bernardino de Souza não viu o seu maior projeto publicado.Idéias/ideais - Bernardino promoveu a construção, no bairro da Lapinha, de um pavilhão onde hoje se conserva ainda a figura lendária das páginas da Independência da Bahia (1823). Os carros alegóricos do caboclo e da cabocla são conduzidos pelo povo ao Campo Grande, em 2 de julho. Entre as grandes realizações do grande estudioso está à construção do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e da Faculdade de Direito da Bahia, que realizou com esforço inaudito, empreendendo-se excursões pelo interior da Bahia a fim de angariar donativos, fazendo conferências e promovendo espetáculos até vê-los instalados em prédios condignos.
Em virtude dos considerados ou relevantes serviços prestados à terra de Rui Barbosa (1849-1923), a congregação da Faculdade de Direito, por resolução de 27 de outubro de 1937, conferiu-lhe os títulos de Professor Emérito e Benemérito da Faculdade. Seus trabalhos refletem todo o gosto e o amor pela terra baiana, onde fez toda a sua formação intelectual. De modo que suas obras, revestidas de exaltação incontida, eram, ao mesmo tempo, de precisão heurística intocável.
Bernardino de Souza especializou-se em nomenclatura geográfica, produzindo várias monografias na matéria e, a final, um livro clássico: Onomástica geral da geografia brasileira (1927) e republicada em 1939 com o título de Dicionário da terra e da Gente do Brasil. O pesquisador sergipano foi sócio correspondente do Instituto Arqueológico e Geográfico de Pernambuco; do Instituto Histórico de São Paulo; do Instituto de Minas Gerais e membro correspondente da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro e outras sociedades nacionais e estrangeiras. Colaborou em vários periódicos baianos: Diário de Notícias; Jornal de Notícias; Via-Láctea; Revista da Academia de Letras da Bahia; Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Revista da Faculdade de Direito da Bahia, Revista Bahiana de Doutrina, Jurisprudência, dentre outros.
Gilfrancisco Santos
Jornalista, pesquisador e professor membro do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
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