terça-feira, 5 de maio de 2009

ANFRÍSIA SANTIAGO

Prédio da Escola Anfrisia Santiago

Autora: Consuelo Pondé de Sena

Não se pode escrever a história da educação na Bahia sem destacar,por irrecusável dever de justiça, o singular papel desempenhado por Anfrísia Santiago, personalidade marcante do ensino em nosso meio.
É, pois, com elevada honra que me desincubo da dignificante tarefade traçar-lhe o perfil, cumprindo-a em nome de tantos quantos se foram beneficiados por sua superior influência. Deponho em lugar de seus discípulos,dos que privaram da salutar convivência com aquela excepcional pedagoga baiana, dentre as quais, humildemente me incluo.

Anfrísia Augusta Santiago nasceu a 21 de setembro de 1894, à rua dos Marchantes nº 65, distrito de Santo Antônio, nesta capital. Profundamente piedosa, desde cedo revelou extraordinário pendor para a vida conventual,não lhe tendo sido possível, entretanto, ingressar na Ordem das Ursulinas, conforme sempre sonhara. É que tendo sua família sido desfalcada da presença paterna, assumiu a jovem Anfrísia o lugar de chefe de família, substituindoo Sr. Marciano Santiago. Coube-lhe, pois, a partir daquele momento,assistir à DD. genitora D. Amélia Rosa de Araújo Santiago e aos irmãos:Raimundo, Arlinda, Helenita e Rita Carmelita.

A condição de arrimo de família não lhe permitiu, portanto, consagrar-se a Deus através do exercício do magistério, no seio da comunidade Ursulina. Nem por isso, todavia, arrefeceu-lhe o fervor religioso, por quanto,no seu espírito se esculpira a fé que lhe iluminaria a límpida caminhada neste mundo. Possuidora de admirável capacidade de sacrifício e beneficiada do"capital coragem", o maior dote que possuía, no dizer de sua extremosa mãe, renunciou ao ambicionado projeto de vida para dedicar-se àqueles que lhe cumpria prover a subsistência e dirigir os passos.

A aluna brilhante, desde a aula primária, mais amplamente se lhe revelaram as qualidades intelectuais durante o período em que cursou a Escola Normal da Bahia, onde se diplomou, aos l6 anos de idade, no dia 30 dedezembro de 1910.
Cabia-lhe, assim, precocemente se iniciar na árdua missão de educadora, tarefa de que se desincubiu inicialmente no ensino particular, ao assumira função de adjunta da Escola Primária do Educandário Coração de Jesus,onde lecionou, apenas, de fevereiro a abril de 1911. É que, naquele ano,foi oficialmente nomeada professora interina do arraial de Santo Estêvão, naVila de São Francisco do Conde. Erradicada do ambiente familiar, seguiu para aquela localidade a fim de ali iniciar nobre apostolado educacional. Efetivada no magistério em 27 de maio de 1912, ainda se manteve no local até 1914.

Todavia, em face de sua designação para professora da Escola Municipaldo distrito da Vitória (1914-1915), teve que regressar a Salvador. É que no dia 7 de outubro de 1914, havia sido nomeada adjunta do mesmo estabelecimento, situado na rua do Rosário de João Pereira, à Avenida Setede Setembro, hoje simplesmente Rosário. Pouco tempo, entretanto, permaneceria a jovem mestra no exercício do referido cargo, extinto, em 1916, por decisão do Órgão Superior da Educação do Estado.Ao mesmo tempo, o Conselho Municipal do Salvador criou sessenta cadeiras populares no subúrbio. Na oportunidade, graças às providências adotadas pelo Presidente Consultivo, Dr. Alfredo de Campos França, foi Anfrísia Santiago indicada para reger a Escola Popular da Cruz do Pascoal, em Santo Antônio Além do Carmo, depois convertida na primeira Escola Municipal do tradicional distrito, onde lecionou de 1916 a 1925.

Ambicionando, no entanto, realizar plenamente o seu objetivo educacional e, ao mesmo tempo, imprimir a marca de inconfundível personalidadebaiana, pôde, afinal, em 1927, fundar o Colégio Na. Sra. Auxiliadora, a cuja frente esteve desde aquela data e até pouco tempo antes do seu desaparecimento,ocorrido no dia 27 de abril de 1970.Enfrentando, desassombradamente, as naturais preocupações que suscitam um empreendimento dessa natureza, impôs-se, com apenas 33 anos, perante a comunidade baiana, que acolheu com respeito e confiança, a iniciativa da conceituada Mestra.É de ressaltar que, sendo educadora nata, a Anfrísia Santiago impulsionava o vivo empenho de ministrar lições de moral, ética e civismo, pregações essas que sempre se sucediam após a oração matinal rezada, em conjunto, na roça da casa verde, ou no pátio ornado de lindas trepadeiras coloridas,onde se reuniam as séries do ginásio antes do início dos trabalhos escolares.
Era, pois, uma pedagoga preocupada com a transmissão de conhecimentos, com a comunicação de benefícios modelos de comportamento e corretas atitudes perante a vida.Anfrísia Santiago transmitia e ensinava, orientava e repassava, com lucidez e clarividência, aos seus discípulos, belas e construtivas noções acercadas normas de conduta e regras de bem viver. Parece-me que estou a escutá-la declinando o belo e educativo aforismo de Elizabeth Leseur: "Toda alma que se eleva, eleva o mundo".Por outro lado, além da atividade educativa, sobretudo exercida na condição de diretora do seu estabelecimento de ensino, foi D. Anfrísia uma intelectual de méritos incontestáveis. Dotada de rápido raciocínio, reconhecida erudição, excedia-se igualmente na lógica argumentação. Circunspecta e severa, competente e aplicada, rapidamente se impôs à admiração do povo de sua terra.Por todas essas razões, foi distinguida em algumas oportunidades educacionais. Assim, participou do Congresso Pedagógico de 1915, nesta capital.

Em 1933, tomou parte do 3o Congresso de Educação, ocorrido em São Paulo, sob o patrocínio da Associação Brasileira de Educação (CDE).Em 1934, também se fez presente ao 4o Congresso de Educação em Fortaleza-Ceará, em cuja oportunidade teve brilhante desempenho.Não lhe atraía o brilho do sucesso. Em lugar de pleitear posições, ou disputar encargos, preferia desempenhar sua função de educadora. É que privilegiava, antes de tudo, o seu Colégio, valorizava a sua profissão, preferindo sempre estar entre seus alunos e colaboradores.
Avessa à promoção, era extremamente discreta nas atitudes e no trajar-se. Sempre se apresentava elegantemente vestida desde as primeiras horas da manhã. Recordo-a nos seus impecáveis "tailleurs" de talhe perfeito e sóbrias cores, nos seus sapatos escarpins de salto médio e escuros nas finas meias de costura corretíssima, no apurado bom gosto, no uso de requintadas écharpes de seda pura que lhe ornavam o colo sempre oculto. Nunca a vi com os braços descobertos. Tinha-os sempre revestidos com bem montadas mangas compridas.Relembro-a, igualmente, no uso de accessórios de extremo bom gosto,requinte da mulher naturalmente elegante. Rosto lavado, total ausência de pintura facial, cabelos presos em coque, mãos longas, unhas bem tratadas e polidas, revestidas de esmalte incolor. Enfim, uma Senhora como poucas na Bahia, que sabia adequar ao tipo, à sua idade, e ao seu "status" de educadora , a vestimenta condizente com a sua personalidade.Se é certo que D. Anfrísia teve uma vida árdua e repassada de luta, obteve, no entanto, muitas vitórias profissionais.
Ao completar bodas de prata de magistério teve a grande alegria de diplomar a primeira turma de Professoras do Colégio Na. Sa. Auxiliadora, ocasião em que pronunciou delicado discurso de paraninfa.Penso ser indispensável mencionar, ainda, que sempre buscou imprimir originalidade nos uniformes usados por seus discípulos. Conhecida ficou na Bahia a graciosa farda denominada "zebrinha", constituída de um vestido tipo chemisier e chapeuzinho do mesmo tecido. Mais tarde, adotou para as séries do curso primário um vestido de anarruga com gola branca de fustão, diferenciando cada série pela cor predominante do tecido.Não se cingiu, porém, exclusividade ao papel de educadora a atuaçãode Anfrísia Santiago no seio da comunidade baiana. Assim, de 1940 a 1948, encontramo-la como membro da diretoria do Centro de Estudos Baianos, em cuja agremiação particular figurava como única representante do sexo feminino.

De sua autoria, é ainda, o primeiro trabalho divulgado na Série Centro de Estudos Baianos, o de nº 1, intitulado: Capelas Antigas da Bahia, 24 de abril 1951.Em 1947, havia assumido, após certa relutância, o Departamento de Educação do Estado da Bahia, em cuja função permaneceu de maio a setembro, em atendimento ao convite do então Governador da Bahia, Dr. Otávio Mangabeira, através da indicação do insigne educador baiano, Dr. AnísioSpínola Teixeira, seu fraternal amigo.
Pesquisadora pertinaz e paciente, passava longas horas nos arquivos baianos, especialmente consultando sobre as nossas igrejas e acerca da vida do notável poeta Castro Alves, a quem, além de admirar profundamente, era ligada por laços de parentesco, conforme revelava constantemente. Entre outros títulos que ornam o seu espírito operoso e dedicado, vale mencionar: membro do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, e do Instituto Genealógico da Bahia. Fundadora e ex-presidente da Federação das Bandeirantes, seção da Bahia, de cuja agremiação, pelos relevantes serviços prestados, recebeu a Estrela do Mérito das Bandeirantes do Brasil.A repercussão de sua importante obra educacional atravessou asfronteiras estaduais, sendo-lhe, em vista disso, outorgada, pela Prefeitura doDistrito Federal, a Medalha Anchieta.
Nesta capital, em 1960, recebeu distinguida homenagem da Inspetoriado Ensino Secundário de Salvador, então dirigida pelo Pe. Manuel Barbosa, tendo sido orador da solenidade, que a enobreceu com o título de Mestre do Ano, o Prof. Dr. Antônio Ernani de Assis Menezes.E D. Anfrísia, que jamais pleiteou honrarias, que recusou a honroso convite para compor o quadro docente da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Isaías Alves, ainda teve ornado o peito digno com a nobilitante honraria de Cavaleiro da Ordem Nacional do Mérito Educativo, que lhe foi conferida, a 27 de setembro de 1968, pelo Presidente da República, Gal.Arthur da Costa e Silva, de acordo com o decreto lei no 61.285, de 1o desetembro de 1967. Cumpria, assim, o Governo Federal um fundamental dever de justiça para com aquela que dedicara toda a sua existência à causa da educação.Oito anos antes, a 3 de dezembro de 1960, completou a inesquecível Mestra o seu jubileu de ouro, cercada pelo respeito dos seus conterrâneos e pelo carinho de tantos quantos lhe admiravam os incontestáveis méritos de inteligência e caráter.
Profundamente voltada para as coisas do espírito, católica convicta, entregou-se, igualmente, à obra social, amparando pobres e desvalidos, aos quais, na medida do possível, procurou oferecer conforto material e espiritual. Para tanto, decidiu fundar, com a inestimável colaboração de seus auxiliares diretos, amigos e discípulos, a cruzada social Auxílio Fraterno, no bairro de Brotas, incubida de prestar assistência médica, alimentar e religiosa a parte da população carente que, então, residia naquele trecho do populoso bairro. Hoje, na mesma área, entregue à Arquidiocese de São Salvador, eleva-se a Capela de Na. Sra. de Fátima.Em nossa opinião, pelo muito que nos foi dado acompanhar acerca de sua ação e de sua trajetória de vida, não foi a Bahia pródiga nas homenagens que deveriam ser tributadas à memória da incomparável mestra.
A nosso juízo, sua lembrança continua a reclamar as reverências que lhe foram insuficientemente tributadas pelos poderes públicos de nossa terra.Conforme assinalei alhures, não se queira argüir que o fato de ter seu nome incluído em três edições do "Who’s in Latin America" da Universidadede Stanford, Califórnia, nem a circunstância de haver pronunciado inúmerasconferências sobre vultos e fatos da História da Bahia e, ainda, ter realizadoprofundas pesquisas históricas em nossos arquivos dão a exata medidado seu valor como intelectual, das suas elevadas qualidades morais e da sua consagrada obra de educadora.Anfrísia Santiago era, com efeito, uma verdadeira pedagoga. Seus conhecimentos amplos variados e especializados, entusiasmavam a muitos dos seus discípulos que jamais lhe esqueceram os sábios ensinamentos.

Conhecedora perspicaz da vida de Castro Alves, empolgava-se no relato minucioso, preciso e apaixonado da vida do grande poeta romântico baiano, sobre cuja vida, como disse anteriormente, muito pesquisou nos arquivos de nossa cidade.Mas, no que ninguém a excedia, pela seriedade das considerações e profundeza de conhecimento, era naquela extraordinária capacidade de, educando,ministrar lições de civismo. De incutir no alunado as noções maisprofundas e o sentido mais puro da palavra liberdade. Diante de situações que julgava ferir o homem no que ele tem de mais íntimo e respeitável, a sua dignidade, D. Anfrísia pregava a altivez. Em certo instante da vida baiana, em que a sociedade preconceituosa, intencionalmente discriminava pessoas, por esse ou aquele motivo, coube a D. Anfrísia, do alto de sua respeitabilidade, apoiar os discriminados, dando-lhes inteiro apoio e irrestrita solidariedade.O falecimento da notável educadora, após doloroso sofrimento, proporcionou aos seus amigos e admiradores e satisfação de, embora tardiamente,vê-la agraciada com a medalha do Mérito Educacional da Bahia, na Classe Medalha de Prata, em atenção aos relevantes serviços prestados à educação, autorga conferida pelo Governador do Estado da Bahia, Prof. Luiz Viana Filho, na pessoa da Profa. Rita Carmelita Santiago, irmã da pranteada extinta, de acordo com o decreto s/n de 09.03.71, publicado no Diário Oficialde 10 de março do mesmo ano.Pena, entretanto, que a notável educadora pouco houvesse deixado escrito. Instruída, bem informada, imaginativa, pesquisadora consciente e apaixonada, muito poderia ter produzido no campo intelectual. Penso que lhe faltou tempo para ordenar e elaborar trabalhos resultantes de suas sondagens nos nossos arquivos.
A atividade educacional absorveria seu tempo, não lhe tendo permitido uma entrega maior do mister de escritora.Efetivamente, seu sacerdócio maior era a causa do ensino, seu testemunho de vida era a nobre condição de educadora, sua aspiração mais legítima, a orientação da juventude. Nesse sentido, cumpriu fielmente o papel a que se propôs - formar caracteres, forjar inteligências e, finalmente, ensinar aos seus educandos a amar a Deus e estremecer a Pátria.Se é certo que todo ser humano tem a ânsia da imortalidade e esta pode ser construída através da concretização de um ideal, D. Anfrísia Santiago é um nome imortal no campo da educação baiana e brasileira.”
Consuelo Pondé de Sena
Professora da Universidade Federal da Bahia
Presidente do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia
Publicado na Revista da FAEEBA, Salvador, no 6, jul./dez. 1996

Um comentário:

  1. Olá,

    informo que tenho a foto da eterna professora Anfrísia Santiago.

    meu e-mail: willisoncardoso@hotmail.com

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